Mundos Paralelos

“Digam o que disserem, o mal do século é a solidão, cada um de nós imerso em sua própria arrogância,esperando por um pouco de atenção.”

(a bruta verdade de Renato Russo)

Pois é, chegamos. Chegamos? Chegamos. Chegamos onde? No sistema perfeito. Perfeito? É um sistema que permite que todos se sintam contemplados, que todas as individualidades sejam realizadas, todas as potencialidades atualizadas, caso se tenha condições. Tudo que há pra ser dito já foi dito e redito e os discursos já construídos são hoje desconstruídos descontraidamente, com o perdão do trocadilho. As contraculturas são absorvidas pela cultura oficial e comercializadas. A minha vida é minha, é sua, mas quero que seja mais minha do que sua, quero ser só eu (mas com um vocezinho ali do lado pra me dizer que eu sou eu e que é fato). É fácil, até certo ponto, editar nossas vidas tais e quais desejamos, os limites entre real e possível, entre atual e virtual são dissolvidos e gritamos quem somos, diariamente, para os nossos 500 amigos no mundo virtual, como se sempre não fossem os mesmos a curtir a nossa montagem da própria vida e comentar sobre ela. Ao invés de redes, creio que estamos mais pra linhas paralelas. Os universos paralelos estão aí, pra quem queira ver. Vivemos vidas paralelas, em pequenos grupos de interesses e afinidades compartilhadas. O que se cria hoje em dia? São vidas paralelas em que a comunicação é pequena, difusa, muitas vezes pré-estruturada, outras inexistente, mas nos sentimos confortáveis com isso, nos sentimos acomodados. Sou eu e mais meia dúzia ou dois milhões como eu por uma coisa que é nossa, que conclamamos nossa. Minorias e maiorias delineiam-se, justificam-se, promulgam-se. O que pretende a pós-modernidade? Se era isso que a senhora queria, pois bem, chegamos. É, o mundo é cada vez mais como uma coleção de paralelas, meu amigo. Paralelas imersas em um sistema que nos incita a consumir produtos, ideologias e estilos para reforçarmos o traço de nossa paralelinha imersa no mundo. Dizem por aí que paralelas um dia se encontram. No fim do universo, quem sabe?

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És contradição, amor

Diz-me se te espero
Ou revela onde te procuro.
Posso em ti apoiar minhas fantasias?
Quão real é a tua imagem
Para que dela eu retire toda a minha inspiração?

É cabível eu te exigir tão hermética objetividade?
Quanto do que te amo és tu mesmo,
quanto é espelho
e quanto abstração?



Em toda espécie de amor há uma dose de idealização.
"Quem ama, idealiza", talvez já dissesse algum sábio grego.
E em toda diversidade amorosa, 
há que se construir uma história conjunta.
Há que se ter um caminho traçado a quatro pegadas
para que mereça a importância da saudade.
Aí sim, teremos o amor.



Mas hoje o mundo me diz que a história acabou,
que a saudade apagou,
que não veio a utopia...
E agora, José?
Haveria ao menos um ínfimo eu que ama,
indiferenciado nessa amálgama de caos
que o mundo pós-moderno se conclama?
Haverá um tu me esperando nos confins desse caos,
pronto a me corresponder?


Sei que há, pois falo contigo. 
Sei que sou, porque sinto.
E sinto profundamente que te procuro.

E, se indiferenciado ainda estou, há mais o que dizer.
Em toda forma de amor há uma alma de contradição.
Como contraponto ao mundo que se apresenta,
outrora harmonizante,
Preciso saber quem sou,
Para que possas ser comigo,
Caminhante.

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"Trabalho de parto do infinito - parte II"

"Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de arte realizada. Naquela ordem encantada. Conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos além do tempo... Soltos... (distacatti)"
(F. Fellini, La Dolce Vita)

A palavra que se repete na citação acima, de um filme de Fellini, no original em italiano é "distacatti", significando muito mais que a mera tradução da legenda, "soltos". Vivermos "destacados" não é o mesmo que vivermos soltos. É o reconhecimento de que um dia estivemos juntos e fomos apartados. Fomos descolados, destacados, dando a entender que não por nossa própria vontade. A palavra também lembra uma notação da escrita musical, em que as notas devem ser executadas cada uma a seu tempo e serem bem acentuadas. Dessa forma, "distacatti" é, ao mesmo tempo, também um modo de conduzir a vida, de marcar seu ritmo, vivendo cada coisa por vez, sem ligação com as demais, libertos dos afetos, que conferem elo a tudo que vivemos. Viver em "distacatti" é como viver só e julgar que se vive ao lado de. É um modo, de fato, de se viver ao lado de, pois, de qualquer forma, todas as notas estão presentes na mesma melodia, ainda que "soltas".
Não sei como o filme resolve a questão. Dei "pause" na cena da citação acima e não continuei. Isso mesmo. Não sei ainda como termina "La dolce vita". Pelo que ouvi dizer, não termina "bem". No entanto, terminando bem ou mal, não havia como continuar depois daquela fala, que de tal modo me intrigou. De qualquer forma, quero abrir a questão antes de verificar como o filme a conduz. Faço aqui uma mudança na pontuação da fala transcrita, para lhes expor melhor minha dúvida: conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos além do tempo?
Aparentemente a própria citação já nos dá a solução. Viveríamos soltos, amando-nos, na "harmonia da obra de arte realizada", o que, retomando a metáfora da música, é pertinente, pois as notas encontram-se soltas, mas ligadas às demais pela harmonia da própria música, que faz com que as notas "combinem", soando afinadas ao apreciador. Diz o personagem, no filme, que se trata de uma ordem "encantada". Pois bem, encantada. A harmonia é essa ordem encantada, que também se sente na própria vida, o que nos liga aos demais. Somos então seres que vivem soltos, mas combinados. E o que dizer de nos libertarmos das paixões e sentimentos?
Entrei em certo paradoxo ao perceber que num momento a fala manifesta a libertação dos afetos, e em outro diz que ainda assim nos amaríamos "tanto". Seria o fato de haver uma "ordem encantada", a certeza da harmonia, a certeza da ligação com o outro que nos deixa livres para vivermos destacados? Wallon diria que de forma alguma viveríamos completamente em "distacatti". Um ser humano não se completa como pessoa enquanto não se ligar a outro, pelos afetos, principalmente e primordialmente. Bem como uma nota musical por si é só nota, mas não é música, que é, por definição, a justaposição ordenada de sons, em uma progressão temporal.
Vivemos, da mesma forma, no tempo, não "além" dele, mas nele. Bergson diz inclusive que nossa interioridade é tempo puro, é duração. Vivemos no tempo, vivemos com outros. As notas musicais viram música no tempo do compasso, ao lado das demais. O desejo de ultrapassar o tempo, de não ter preocupação com a finitude e de sermos "soltos", demonstra a necessidade humana do eterno e da liberdade. Talvez a liberdade esteja em descobrir a harmonia dos afetos que nos ligam às outras pessoas, dando assim, à nossa vida, um pano de fundo de imensidão, de não se viver só.
E de pensar nessa imensidão em que a harmonia nos coloca, ligando-nos uns aos outros, vejo que de fato, na metáfora musical, o tempo da música pode variar e acabar, as notas podem ser trocadas e recombinadas, mas a harmonia continuará sempre sendo harmônica. O fato de nos ligarmos aos outros pela harmonia dos afetos é, a meu ver, a certeza de apesar da nossa finitude, transitoriedade e mutabilidade (pois notas calam, desvanecem e mudam), podermos participar, de alguma forma, de uma espécie de eternidade.
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Trabalho de parto do infinito - parte I

"Tudo o que desejamos é um eterno que nos ame."
(Meu nick no msn há 1 mês.)


Esse tempo todo que fiquei sem postar me veio confirmar no mínimo uma coisa: não dá pra forçar nenhum texto. Eles apenas nascem, quase num parto, após serem gestados por um prazo, ainda que de forma imperceptível (seria inconsciente? Não, acredito que de forma consciente, mas não exatamente com uma intenção sempre clara). Uns podem dizer que isso é fruto da minha boa vontade para com a hoje tão impopular "inspiração" ou "gênio criativo" e que é desculpa para quem não tem tempo ou idéias pra postar. Eu digo que inspiração não é assim assunto pra se julgar tão ordinário e que, se ela existe, em mim trata-se mais um processo de germinação espontânea e prolongada do que de um insightezinho qualquer. Finda a digressão, voltemos, pois, à sala de parto.
E o filho nasceu. E foi feliz para sempre. Opa, opa, opa. Renato Russo, na voz de Cássia Eller, já dizia que "o pra sempre sempre acaba". Eles próprios, dois grandes da música, se foram e o confirmam. No entanto, se eternizaram de alguma forma no que produziram, pois ainda que discos arranhem e quebrem, como pensou Cazuza, eles são uma maneira de ficar meio "pra sempre" na terra. Um pra sempre um pouco mais longo que o pra sempre da vida, ao menos. Um momento: que abuso de pra-sempres é esse?
Pra sempre não devia ter medida, devia ser um só, eterno. Mas quanto mais "pra-sempres" adotamos na vida, mais eles se quebram e percebemos quão ilusórios são. Se quebram como grandes placas de gelo derretendo sobre um lago no inverno. A metáfora pode ser pobre, mas é válida. Imagine-se andando em uma placa de gelo dessas. Permanecemos boa parte da vida a andar sobre verdades que cremos eternas, atemporais. Até que, frágeis, derretem, e passamos a ter de surfar nas placas que se formam, nas meias-verdades, nas relatividades que se apresentam diante de nós.
Essa verdade eterna em que acreditamos pode vir de fontes diversas: pode ser a verdade das religiões, aos mais crentes, ou mesmo a verdade que buscamos (e, pensamos, encontraremos) na Ciência, aos mais céticos; no entanto, já afirmava Hume, mesmo a Ciência, no fundo, não passa de uma crença, meus caros. Acreditamos necessária e piamente numa eternidade como chão para nossas andanças por aí. Essa verdade nunca é em nós e para nós, contraditória. Ela é absoluta, sempre presente e sempre favorável. Fosse ela um ente dotado de alma, seria pleno amor para conosco. Penso, como no post da "bolinha da esperança", que finda essa crença, no que quer que seja, termina também nossa vida.
O que fazemos, porém, quando o chão se rompe sob nossos pés e algo da experiência nos diz que nada é eterno e que não há verdades, apenas placas móveis de gelo derretendo - as transitoriedades e os relativismos da vida? É preciso primeiro escolher: criamos um novo solo, ainda que imaginário, aprendemos a andar melhor sobre as placas ou terminamos congelados no lago.
(PS: continua... não sei por quantos posts, provavelmente não eternamente, mas continua...)
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A Bolinha da Esperança (créditos @marinabm_)

"Acreditar nunca é demais."
(Allets, by Danilo Ciconi)

Eu preciso acordar cedo amanhã. Mas bateu vontade e necessidade de escrever. O blog anda às moscas mesmo, e minhas olheiras virão, quer queira quer não, com o começo das aulas. Cá estou. Não perco quase nada e ganho um texto extraído sem anestesia.
Um inseto cava, cava sem alarme, perfurando a terra, sem achar escape. Será que um dia ele chegará a algum lugar? Encontrará saída? Sem querer estragar, mas já estragando a surpresa da saga do insetinho (que pode ser lida na íntegra de seus 13 concisos versos aqui:http://bit.ly/gWv1ml), seu labirinto se desatará e uma orquídea vai se formar.
Perguntamo-nos: terá sido somente pela imaginação magnífica e libertária de Drummond que o pequeno animal conseguiu um final feliz após tanta luta ou poderíamos ter um também? Claro que não à moda de "o universo todo conspira a nosso favor", pois, convenhamos, geralmente ele conspira, inspira e transpira na contra-corrente dos nossos planos, ainda mais quando muito desejados.
Estou aqui para defender e divulgar uma teoria inspirada em uma amiga, uma singela expressão que eu li em seu blog, de que carregamos uma bolinha de esperança. (juro que é o último link, o do blog: http://bit.ly/hSTxgX) Fiquei intrigada e admirada: pois não é exatamente isso? Assim, tão simples?
Eu também tenho uma "bolinha de esperança" e, muitas vezes, é o que nos resta e dá coragem. Aquilo que, ao se perder, perde-se tudo, ou talvez tudo o que é humano, pois o mecanismo orgânico permanece tentando chegar à meta traçada por inércia, mas sem nela acreditar.
Por isso talvez, ela seja "a última que morre", pois talvez, ao morrer, morramos junto. Quando Pandora abriu a caixa dos males e deixou preso um, era justamente o que a tudo mataria, pois aniquilaria a esperança, que é, segundo a sabedoria popular, a mitologia grega, minha amiga e eu, aqui, e por mais simples que pareça, o bem mais precioso que temos. Tristes daqueles que o desprezam.



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Das manchetes nossas de cada dia

"A dor da gente não sai no jornal"
(Chico Buarque)

Eu olhando as manchetes, dia após dia, centenas de mortos, vários cenários, um mesmo acontecimento. Chuvas torrenciais, deslizamentos, cheias, enchentes. Condolências nacionais, ajudas de todos os cantos. Eu leio, vejo as cenas no telejornal. Recolho coisas em casa, compro alimentos, presto meu auxílio. Afinal, é trágico. É uma verdadeira tragédia, tanto que reconhecem isso no país inteiro e até fora dele. Se todos dizem que é trágico, por que haveria eu de discordar? E mais trágico ainda seria ficar de braços cruzados não ajudando, não é mesmo? Só não sei se ajudo por altruísmo, por reação de massa ou por que me rói uma culpa. Uma imensa culpa de não estar feliz e satisfeita com tudo o que possuo, sendo que há inúmeras pessoas perdendo tudo, mesmo a vida, lá fora. Eu me pergunto o que me falta... E me culpo por faltar. Se meu sofrimento fosse deveras sério, digam-me, por que não sairia no jornal?
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Realidades paralelas

Outro dia vi na televisão uma cantora que não era real. Duas coisas absurdas nessa frase: eu assistindo tv, longo tempo que não faço isso com freqüência (nem foi tão ruim assim). Bem, essa é menos absurda que a outra. A segunda coisa absurda é escrever que a cantora nipônica na reportagem do jornal não era real; teria sido então minha imaginação? Seria irreal? Ela era real, mas de um outro tipo: o virtual. Sim, pensando bem (e lendo um tal filósofo francês bem atual), compreende-se que real e virtual não são opostos, o virtual apenas carrega mais possibilidades que o real homônimo, mas ainda assim é um tipo de acontecimento real.
Sem querer estragar a história, para quem não assistiu ao filme, mas apenas um breve comentário. Em "A Origem" acompanhamos um protagonista que se vê entre dois mundos, um real, no sentido mais comum do termo, o outro, onírico. Ele deseja fortemente habitar o "plano do sonho/memórias", onde tem a ilusão de manter um projeto impecável de vida para si. Seu problema é estar ciente de que esta outra realidade é onírica, por assim dizer; sabe, portanto que ela é falsa, por oposição ao mundo real que experiencia, sujeito a contingências que independem dele, o protagonista.
Mal comparando o espaço virtual ao de um sonho em que de fato criamos as personagens e orientamos os acontecimentos, o que aconteceria se preferíssemos (e muitos já o fazem) essa virtualidade à realidade material? E se apenas nela vivêssemos, no caso, com o conhecimento de que se trata de algo virtual, colocando o material em segundo plano? Talvez fôssemos atormentados por problemas da realidade externa (tal como o protagonista de "A Origem"). Porém, penso haver também a possibilidade de pessoas se identificarem tanto com a atraente realidade virtual e manipulável que passem a vê-la como sua própria realidade global, numa certa inversão de mundos. Ou talvez nosso mundo real híbrido passe a ser de fato mais controlável, mais próximo de um ideal.
Voltando ao exemplo da música, ou à combinação de sons que se consegue por meios digitais, a cantora virtual não me entusiasmou e não sei se essas propostas já têm muitos adeptos e simpatizantes. Na contramão, acredito que a graça maior em se assistir a um cantor "material" ao vivo é ver que como ele se comunica através da música, como a interpreta, dividindo suas emoções expressas pela voz, que pode até falhar, mas que ainda assim será tocante pois ele se despoja cantando. Há em sua expressão um pouco de sua história, de afetuosidade. Vemos nele o caráter humano com o qual nos identificamos.
Sentiríamos falta do erro, daquela atitude não totalmente ajustada e perfeita, dada por algorítmos. Um pouco do que nos faz humanos é a imperfeição e a transitoriedade. Por isso ainda nos alimenta idealizar o perfeito e eterno. Não gostaria de condenar o que está chegando como uma nova espécie andróide, mas se deve estudar quanto de legitimamente humano ela carrega e se nossos riscos são válidos.

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