"Trabalho de parto do infinito - parte II"

"Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de arte realizada. Naquela ordem encantada. Conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos além do tempo... Soltos... (distacatti)"
(F. Fellini, La Dolce Vita)

A palavra que se repete na citação acima, de um filme de Fellini, no original em italiano é "distacatti", significando muito mais que a mera tradução da legenda, "soltos". Vivermos "destacados" não é o mesmo que vivermos soltos. É o reconhecimento de que um dia estivemos juntos e fomos apartados. Fomos descolados, destacados, dando a entender que não por nossa própria vontade. A palavra também lembra uma notação da escrita musical, em que as notas devem ser executadas cada uma a seu tempo e serem bem acentuadas. Dessa forma, "distacatti" é, ao mesmo tempo, também um modo de conduzir a vida, de marcar seu ritmo, vivendo cada coisa por vez, sem ligação com as demais, libertos dos afetos, que conferem elo a tudo que vivemos. Viver em "distacatti" é como viver só e julgar que se vive ao lado de. É um modo, de fato, de se viver ao lado de, pois, de qualquer forma, todas as notas estão presentes na mesma melodia, ainda que "soltas".
Não sei como o filme resolve a questão. Dei "pause" na cena da citação acima e não continuei. Isso mesmo. Não sei ainda como termina "La dolce vita". Pelo que ouvi dizer, não termina "bem". No entanto, terminando bem ou mal, não havia como continuar depois daquela fala, que de tal modo me intrigou. De qualquer forma, quero abrir a questão antes de verificar como o filme a conduz. Faço aqui uma mudança na pontuação da fala transcrita, para lhes expor melhor minha dúvida: conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos além do tempo?
Aparentemente a própria citação já nos dá a solução. Viveríamos soltos, amando-nos, na "harmonia da obra de arte realizada", o que, retomando a metáfora da música, é pertinente, pois as notas encontram-se soltas, mas ligadas às demais pela harmonia da própria música, que faz com que as notas "combinem", soando afinadas ao apreciador. Diz o personagem, no filme, que se trata de uma ordem "encantada". Pois bem, encantada. A harmonia é essa ordem encantada, que também se sente na própria vida, o que nos liga aos demais. Somos então seres que vivem soltos, mas combinados. E o que dizer de nos libertarmos das paixões e sentimentos?
Entrei em certo paradoxo ao perceber que num momento a fala manifesta a libertação dos afetos, e em outro diz que ainda assim nos amaríamos "tanto". Seria o fato de haver uma "ordem encantada", a certeza da harmonia, a certeza da ligação com o outro que nos deixa livres para vivermos destacados? Wallon diria que de forma alguma viveríamos completamente em "distacatti". Um ser humano não se completa como pessoa enquanto não se ligar a outro, pelos afetos, principalmente e primordialmente. Bem como uma nota musical por si é só nota, mas não é música, que é, por definição, a justaposição ordenada de sons, em uma progressão temporal.
Vivemos, da mesma forma, no tempo, não "além" dele, mas nele. Bergson diz inclusive que nossa interioridade é tempo puro, é duração. Vivemos no tempo, vivemos com outros. As notas musicais viram música no tempo do compasso, ao lado das demais. O desejo de ultrapassar o tempo, de não ter preocupação com a finitude e de sermos "soltos", demonstra a necessidade humana do eterno e da liberdade. Talvez a liberdade esteja em descobrir a harmonia dos afetos que nos ligam às outras pessoas, dando assim, à nossa vida, um pano de fundo de imensidão, de não se viver só.
E de pensar nessa imensidão em que a harmonia nos coloca, ligando-nos uns aos outros, vejo que de fato, na metáfora musical, o tempo da música pode variar e acabar, as notas podem ser trocadas e recombinadas, mas a harmonia continuará sempre sendo harmônica. O fato de nos ligarmos aos outros pela harmonia dos afetos é, a meu ver, a certeza de apesar da nossa finitude, transitoriedade e mutabilidade (pois notas calam, desvanecem e mudam), podermos participar, de alguma forma, de uma espécie de eternidade.
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