Das manchetes nossas de cada dia

"A dor da gente não sai no jornal"
(Chico Buarque)

Eu olhando as manchetes, dia após dia, centenas de mortos, vários cenários, um mesmo acontecimento. Chuvas torrenciais, deslizamentos, cheias, enchentes. Condolências nacionais, ajudas de todos os cantos. Eu leio, vejo as cenas no telejornal. Recolho coisas em casa, compro alimentos, presto meu auxílio. Afinal, é trágico. É uma verdadeira tragédia, tanto que reconhecem isso no país inteiro e até fora dele. Se todos dizem que é trágico, por que haveria eu de discordar? E mais trágico ainda seria ficar de braços cruzados não ajudando, não é mesmo? Só não sei se ajudo por altruísmo, por reação de massa ou por que me rói uma culpa. Uma imensa culpa de não estar feliz e satisfeita com tudo o que possuo, sendo que há inúmeras pessoas perdendo tudo, mesmo a vida, lá fora. Eu me pergunto o que me falta... E me culpo por faltar. Se meu sofrimento fosse deveras sério, digam-me, por que não sairia no jornal?
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Realidades paralelas

Outro dia vi na televisão uma cantora que não era real. Duas coisas absurdas nessa frase: eu assistindo tv, longo tempo que não faço isso com freqüência (nem foi tão ruim assim). Bem, essa é menos absurda que a outra. A segunda coisa absurda é escrever que a cantora nipônica na reportagem do jornal não era real; teria sido então minha imaginação? Seria irreal? Ela era real, mas de um outro tipo: o virtual. Sim, pensando bem (e lendo um tal filósofo francês bem atual), compreende-se que real e virtual não são opostos, o virtual apenas carrega mais possibilidades que o real homônimo, mas ainda assim é um tipo de acontecimento real.
Sem querer estragar a história, para quem não assistiu ao filme, mas apenas um breve comentário. Em "A Origem" acompanhamos um protagonista que se vê entre dois mundos, um real, no sentido mais comum do termo, o outro, onírico. Ele deseja fortemente habitar o "plano do sonho/memórias", onde tem a ilusão de manter um projeto impecável de vida para si. Seu problema é estar ciente de que esta outra realidade é onírica, por assim dizer; sabe, portanto que ela é falsa, por oposição ao mundo real que experiencia, sujeito a contingências que independem dele, o protagonista.
Mal comparando o espaço virtual ao de um sonho em que de fato criamos as personagens e orientamos os acontecimentos, o que aconteceria se preferíssemos (e muitos já o fazem) essa virtualidade à realidade material? E se apenas nela vivêssemos, no caso, com o conhecimento de que se trata de algo virtual, colocando o material em segundo plano? Talvez fôssemos atormentados por problemas da realidade externa (tal como o protagonista de "A Origem"). Porém, penso haver também a possibilidade de pessoas se identificarem tanto com a atraente realidade virtual e manipulável que passem a vê-la como sua própria realidade global, numa certa inversão de mundos. Ou talvez nosso mundo real híbrido passe a ser de fato mais controlável, mais próximo de um ideal.
Voltando ao exemplo da música, ou à combinação de sons que se consegue por meios digitais, a cantora virtual não me entusiasmou e não sei se essas propostas já têm muitos adeptos e simpatizantes. Na contramão, acredito que a graça maior em se assistir a um cantor "material" ao vivo é ver que como ele se comunica através da música, como a interpreta, dividindo suas emoções expressas pela voz, que pode até falhar, mas que ainda assim será tocante pois ele se despoja cantando. Há em sua expressão um pouco de sua história, de afetuosidade. Vemos nele o caráter humano com o qual nos identificamos.
Sentiríamos falta do erro, daquela atitude não totalmente ajustada e perfeita, dada por algorítmos. Um pouco do que nos faz humanos é a imperfeição e a transitoriedade. Por isso ainda nos alimenta idealizar o perfeito e eterno. Não gostaria de condenar o que está chegando como uma nova espécie andróide, mas se deve estudar quanto de legitimamente humano ela carrega e se nossos riscos são válidos.

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