Eu reinei no que nunca fui.

"Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim.
Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse."


"Livro do Desassossego", F. Pessoa


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Sardinha fresca de Lennon e Hitchcock

"Little girl: I'm afraid of things that fly. They scary me.
Sheldon: Me too!"
Episódio de "The Big Bang Theory"
(e eu, pessoalmente, também tenho medo de coisas que voam)

Há um dito popular que de longa data nos comunica a incerteza do fiar-se em aparências. Mas de longa data também é que ignoramos esse aviso, pois se conselho bom fosse, vender-se-ia. Vender-se-ia... Pois eu vim aqui vender o meu. Vender meu peixe, meu conselhinho, que tá mais pra sardinha que pra bacalhau.
"Há um pássaro cantando na escuridão da noite, que aprende a voar, apesar da asa quebrada. Que aprende a ver com seus olhos fundos. Apenas esperando aquele momento para decolar." Mesmo nessa herética tradução semi-literal de "Blackbird" dos Beatles, é possível enxergar um ser vivo delicado, frágil, até debilitado, em metáfora com a condição humana. Um animal que deseja ser livre e potente, que atravessa dificuldades, vence e, por fim, consegue voar.
Passando da cabeleira de Lennon à careca de Hitchcock, n'Os Pássaros, de 1963, o cineasta faz de um bando de inocentes e dóceis "blackbirds that sing" uma força estrondosa, ameaçadora e assassina. Diferente do que poderia soar um filme apocalíptico-ambientalista prevendo a vingança da natureza contra o Homem, a questão está no fato de que em nenhum momento se descobre a causa do comportamento agressivo atípico daquelas aves. É projetado nesses aparentemente inofensivos animais um comportamento não esperado por sua aparência pacífica.
Mas realmente deveriam essas criaturas ser consideradas naturalmente frágeis e dóceis ou fortes e agressivas? Talvez não devessem ser consideradas previamente, simplesmente. Por mais que digamos ao contrário, não estamos acostumados a viver sem pré-conceitos quanto às coisas. Talvez seja uma forma de nos proteger contra o que virá, já construindo uma idéia do futuro, das ocasiões, das pessoas.
Mas a frustração de ter a perspectiva contrariada pode ser bem pior do que bicadas assassinas de um pássaro. A sensação de não termos o controle sobre nossas próprias vidas. De que o que pensamos de nada serve quando tudo se mostra diferente e ilógico. É frustrante e assustador. Melhor mesmo nos prepararmos pra não estarmos preparados, pro improviso da vida.
(E, ah, além de ter medo de pássaros, eu também prefiro, modéstia à parte, a sardinha ao bacalhau.)
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