"Toca Raul!"

"Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante."
(Raul Seixas, 1973)

"O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira, todos os dias."
(Saramago, 2008)

Outro dia li sobre o Raul algo muito pertinente: que sua genialidade vem de ele haver cantado a pluralidade dos modos de vida em um mundo que defendia a regra à exceção e o padrão moralizante à sociedade alternativa. Desse modo, ele era alguém à frente de seu tempo, que conseguiu traduzir o desejo libertário da época, os anos 70, que foram a versão abrasileirada dos mundialmente conhecidos como "os rebeldes anos 60".
Hoje em dia, apesar de ainda ser muito comum gritar "toca Raul!", o padrão de comportamento parece ter se invertido e estar mais próximo do que Raul profetizava. Ser alternativo parece estar na moda, aí é que está: Raul está na moda! Não que estar na moda seja necessariamente ruim, apenas denota, no caso, que não querer ter aquela velha opinião formada sobre tudo já não é mais exemplo de viver na contra-corrente.
Alguns anos antes de morrer, Saramago declarou que as verdades plurais haviam acabado e que vivíamos todos imersos numa grande mentira. Essa declaração foi feita quase quatro décadas e muitas gerações após Raul Seixas e vem de alguém que, contrariamente à fase de metamorfose ambulante do cantor, encontrava-se no extremo oposto de experiência de vida, mas que revela, mais do que uma fala de alguém no auge da maturidade, também o reflexo de uma época em que muitos são os discursos e as apropriações deles (mentiras) e mínimas, de fato, as verdades plurais.
Cada vez mais internalizamos discursos que se torna tremendamente difícil separar o que é nosso do que é tomado sem consciência à enxurrada do que nos dizem ser nosso. Não consigo afirmar se meu modo de felicidade é esse mesmo ou eu apenas o escolhi em meio a tantos outros que pairam por aí à livre escolha para acreditar-me diferenciado em meio aos demais.
Questiono, então, o seguinte: como se libertar dos discursos existentes e viver uma verdade nossa, que corresponda ao que possuímos intimamente e não simplesmente condizente com o que o outro (com O maiúsculo ou minúsculo) nos diz? O mundo e o posicionamento individual parecem oscilar entre o desejo de encontrar verdade(s) e a crença em que elas não existem. Mas não seria o desejo de ser incomensuravelmente plural a mais nova regra que o mundo de hoje tenta nos impor?
O modo como nos constituímos no dia-a-dia, como nos geramos e (re)criamos nosso modo de ser parece ter adotado esse caráter de pluralidade sem embasamento e dança de personalidades, mas ele é inofensivo somente enquanto a exposição das próprias ideias e afetos for restrita a um mundo particular, seja no âmbito pessoal, familiar, acadêmico. As consequências disso, se elevado ao extremo, são vistas quando chegamos às esferas sociais e políticas, em que discutir e debater pela criação de uma ética conjunta é de extrema necessidade. A ética pode ser plural, mas nunca privada. Pode ser dialética, mas nunca sem respaldo em discussões reais e verdades mais amplas, construídas e consensuais. 
No fundo, que Raul me perdoe, mas é sempre interessante ter algumas opiniões formadas e colocá-las na roda, sem esquecer do ponto-chave que é não se fechar a elas com todas as forças. Todos temos medo de discutir, arriscando-nos ao julgamento alheio de que estamos equivocados e/ou antiquados em nossas opiniões. Sem me desvencilhar um pouco desse medo, talvez eu não escrevesse esse texto, por exemplo.
E, afinal de contas, se Raul estivesse vivo em pleno século XXI, ninguém me garante se ele estaria cantando "Metamorfose Ambulante" ainda, fazendo cover do Johnny Cash, ou escrevendo prefácios do Paulo Coelho...

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